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sexta-feira, 2 de abril de 2010

a fuga


A velha sentada,tinha os olhos fixos nas agulhas. tricotava com muita agilidade para seus 84 anos. Na verdade, mesmo que fosse cega, conseguiria executar o trabalho. Tricotara inúmeros blusões para a família que depois, começaram a preferir usar os comprados prontos. Ela continuava a tecer blusões, que ninguém mais iria usar.

As vezes parava, olhava para o fogo na lareira, tomava um gole de chá, mordiscava um pedaço de torta de maçã e continuava a tricotar. Sem tirar os olhos das agulhas falava com a filha mais velha, que sentada com um livro aberto no colo, nem prestava atenção no que a mãe dizia! Ficava sentada, a tarde inteira, fingindo que lia, servindo chá para a mãe e cuidando do fogo na lareira.

O único som na sala era do bater rápido de uma agulha na outra, os estalos dolorido da lenha queimando. Era uma casa muito silenciosa , sem muitos risos, com poucas alegrias. A casa estava ali, mas não se manifestava. Limpa, muito limpa, nada fora do lugar, apenas as flores, cortadas do jardim, quebravam a monotonia . No centro da mesa de chá, as flores tão coloridas, ficavam meio deslocadas naquele ambiente austero.

A velha, sem olhar para a filha mais velha comenta: -Você precisa dar um jeito na sua vida ! Passou a vida toda perdida em sonhos e agora o que tens de concreto? Nada ! Só conseguiu fazer um filho e ele anda por ai, perdido no mundo! Eu estou velha, quando eu partir, nada mais restará a você!

A filha mais velha , que mal ouvia o que a mãe dizia, ficou atenta quando ouviu a palavra filho. Pensou no filho, mas não na sua ausência, não na distância que os separava, não pensou no fato de que ele sempre esquecia dias importantes, até mesmo seu aniversário. Sempre fora assim ! As vezes, aparecia para o Natal, ai ela conhecia os netos, nascidos durante suas longas ausências.

Ela sorriu ,internamente, um sorriso só seu. Pensava no momento sublime da concepção! Fora uma noite magnífica e ela tinha certeza de que ficara grávida!

-Os filhos são uns desalmados, vociferava a velha entre dentes. Por onde andam os meus? Sobrou só você. Nem lembram que a mãe existe, e tricotava com ferocidade. As agulhas em suas mãos tinha se transformados em espadas, e ela parecia estar envolvida num duelo mortal !

A filha mais velha nada respondia . Continuava perdida em seus pensamentos. Ouvia gritos infantis , ouvia gargalhadas, ouvia música, ouvia choro, ouvia pequenos passos correndo pela casa. Sentia braços gorduchos envolvendo seu pescoço num forte abraço, beijos estalados no seu rosto, mais choro por joelhos esfolados.

Pensou nele adolescente, como vinha zangado da escola, quando seu time de basketball perdia! O juiz sempre era o ladrão! Pensou na primeira namorada , na primeira vez que saíra à noite, na primeira vez que pedira ao pai o carro emprestado. Essa vez foi marcante, saiu com as primeiras estrelas e quando voltou para casa, trazia o sol consigo! Quanta agonia naquela noite!

Depois, a colação de grau, como se sentiu orgulhosa, o pai já tinha partido, ela o levou até lá ,sozinha. Como esquecer o momento em que ele com o diploma na mão a procurou com os olhos, levantou o braço e sorriu ? Mais tarde o primeiro emprego. Inesquecível a tarde em que o conduziu através da nave central até ao altar. Depois a partida. Uma ida sem volta.

-Você é uma tonta! Seu filho só telefona quando precisa de dinheiro. Dê tudo logo para ele. Você pode morar comigo, preciso mesmo de companhia ! Resmungando continua a tricotar aquele blusão que ninguém irá usar.

A filha mais velha, numa fala mansa, pela primeira vez, responde para a mãe.

-Mamãe, a senhora mora comigo ! Serviu mais chá para a mãe, avivou o fogo na lareira, suspirou profundamente e partiu para outra jornada, através de seu pensamento.

Café?


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