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quarta-feira, 11 de abril de 2012

a bailarina


Às vezes procuramos uma coisa e achamos outra. Acordei com vontade de ler poesia, levo a mão a estante e aleatoriamente minha mão cai em Clarice Lispector - se eu fosse eu. Imediatamente viajei para dentro de mim. O que eu faria se eu fosse eu? E por acaso eu não sou eu? Claro que não, eu sou um personagem e como tal, preciso seguir o roteiro. Como eu seria se conseguisse ser “eu” e não a Tania? Dei asas a minha imaginação e voei, mesmo com as asas cortadas.

Lembrei de mim criança, momento importante na minha vida, foi lá que começaram a me moldar, foi lá que começaram a escrever o meu papel no teatro da vida. Eu acabei por incorporar o personagem e atuar, quase à beira da perfeição. Algumas falas eu esquecia, mas improvisava e assim venho trazendo o personagem comigo e o representando dia após dia.

Nasci menina, gostava de ser menina, jamais pensei em ser um menino, principalmente por achar que todos eles eram um tanto tolos, para meu gosto. Eu amava a liberdade que eles tinham! Não concordava e ainda não concordo com as limitações impostas às meninas. Eu não conseguia ver nenhuma diferença tão fundamental entre os meninos e eu, a não ser o fato deles serem meninos. Porque eu precisava brincar com bonecas ou de casinha se eu preferia subir em árvores? Eu subia melhor que meu irmão. Nunca considerei justas essas regras.

Claro que eu era uma fonte constante de preocupação e desespero para minha mãe. Sempre que ela vinha com o aviso de que eu não poderia fazer determinada coisa, por ser menina, eu questionava o motivo. A resposta era sempre uma só :“Você é uma menina , não fica bem e não se discute mais esse assunto.” Grande resposta essa ! Não esclarecia nada e me deixava furiosa. Eram inúmeras as regras para as meninas, desde a maneira de sentar até pegar os talheres com elegância, entre outros absurdos. Para os meninos tudo era aceito. Como eu invejava aquela liberdade deles! Ao longo da vida percebi que as vantagens deles sobre as mulheres eram bem mais amplas do que eu imaginava.

E se eu fosse eu, como seria? Eu tinha vários sonhos! Todos eles para sonhar sozinha. Não queria compartilhar nem um deles. Eu aprendi que precisamos de uma certa dose de egoísmo para sobreviver. Tudo bem, sei que exagero muitas vezes.

Claro que nos meus sonhos, brincar de casinha ou de bonecas, não havia espaço. Eu achava terrível a vida que minha mãe levava, não queria aquilo para mim. Meu pai saia cedo para o trabalho, quando vinha almoçar, encontrava a casa limpa, comida na mesa, filhos limpos e comportados. Será que ele sabia o trabalho que ela passara para oferecer tudo aquilo a ele? Eu tinha pena dela, mas não colaborava me comportando como ela desejava. Não achava justo meu pai na rua, interagindo com outras pessoas e ela presa naquela rotina, sem nenhum tempo só para si mesma. Descobri mais uma injustiça contra as mulheres, trabalho escravo e em confinamento.

Eu sonhava, não poderia compartilhar com minha mãe. Ela não entenderia. Uma vez até tentei, ela me olhou espantada se questionando onde fora que errara tanto na minha criação. Eu disse a ela que queria ser bailarina, esse era meu sonho. Foi como se eu tivesse dito que meu sonho era trabalhar num prostíbulo Ela me disse para nunca mais repetir aquilo e que eu seria professora, esse sim, um serviço decente e apropriado para as mulheres, isso seu eu quisesse um dia trabalhar ou meu marido permitisse. Disse que achava improvável alguém querer casar comigo se eu não mudasse meu comportamento. Não me preocupei nem um pouco com a previsão dela. Marido não fazia parte dos meus sonhos. E eu pensando que fosse um sonho viável! Nunca mais compartilhei meus sonhos com ela.

Eu amava a dança. Amava a leveza, a liberdade de expressão, a delicadeza, a sensualidade e o poder de sedução. No palco, as bailarinas voavam, eu queria voar. Confesso que até hoje, quando assisto um espetáculo de dança, sinto uma certa inveja e uma saudade do que eu poderia ter sido e não fui. Quando meu voo foi cortado, como sou sobrevivente, me voltei para a música. Eu ouvia a música e em imaginação, eu dançava. Até hoje faço isso.

Logo após essa decepção, eu desejei ser homem! Foi essa a única vez que desejei ser um homem. Eu queria ser um marinheiro. Na verdade um fuzileiro naval , um "mariner". A hipótese de uma guerra não me preocupava, era algo distante, para mim. Viajar pelo mundo a fora, parando de porto em porto, conhecendo lugares exóticos, era meu maior sonho. Era sinal de liberdade. Esse sonho era influência do cinema americano. Não pensava que eles não eram tão livres como eu imaginava, mas eu fantasiava. Singrar os mares, soltar as amarras, era tudo o que queria. Nem pensava que eu já havia viajado de navio e vomitara durante todo o percurso, fora o enjoo constante. Nos sonhos o mundo é perfeito. Diante da impossibilidade de me transformar num homem, acabei desistindo desse sonho também. Ainda me vejo, ao olhar o mar, partindo para o desconhecido em busca de liberdade.

Como ser eu mesma? Impossível ! Eu cresci, me adaptei, me tornei professora, com minha mãe queria, me apaixonei irremediavelmente, casei, tive filhos e fui feliz, mesmo não sendo eu mesma. Hoje tenho a liberdade de ser eu mesma, mas tenho responsabilidades e essas continuam me impedindo de ser eu mesma. Eu fui feliz sendo a outra então é melhor deixar a "eu mesma" quieta, no canto do imaginário. Lá, ela pode ser livre. Lá ela não é responsável por ninguém, apenas livre. Não vou perdoar a Clarice!

"Cada um vive atrás das grades que carrega consigo." (Franz Kafka)


Café?


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