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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Caronte


Era um domingo ensolarado, 11 de janeiro, quando Caronte ajudou meu pai a atravessar o rio Styx (Estige). Eu havia passado todo mês dezembro, na casa de meus pais, em São Paulo. Nunca vou esquecer a última vez que vi meu pai e nem vou esquecer de seu último abraço. Ele me abraçou tão apertado quanto permitiam suas forças. Eu o abracei com todo cuidado, com medo de quebrá-lo! Ele era só ossos ! Tinha certeza que era a última vez que eu o veria vivo. Estava voltando para Pelotas pois minha irmã precisava fazer o vestibular lá, teria maiores chances que em São Paulo. Minha mãe não teria a menor condição de pagar uma faculdade particular.

Meu pai era um homem forte, jamais o vi doente. Quebrou um braço uma vez. Ganhou em um sorteio qualquer uma bicicleta. Não sabia andar nela, mas de brincadeira começou a fazer tentativas. Não deu certo, caiu e quebrou o braço.

Os filhos sempre pensam que os pais são eternos. Nunca havia pensado na morte ou na possibilidade da morte de um deles. Quando em setembro, eu soube que meu pai estava doente, não me preocupei. Meu pai era um super homem , tinha certeza que era uma indisposição passageira. Não era ! Era o início de seu calvário. Ele tinha câncer no fígado.

Minha mãe sussurrou nos nossos ouvidos a notícia. Não era para ninguém tocar no assunto com meu pai. Nesse momento, o sussurro de minha mãe causou mais impacto do que se uma bomba atômica tivesse caído sobre nós. Começou um longo período de mentiras.

Nós fingíamos que ele estava com cirrose no fígado e meu pai fingia que acreditava e que logo estaria bem. Não sei se o clima se tornaria mais suportável ou não, em falarmos a verdade. Foram meses difíceis! Como foram difíceis ! Todos perdemos o rumo.

A longa jornada na busca da cura que sabíamos ser impossível, mas tentávamos mesmo assim. As dolorosas idas e vindas do hospital e, pouco a pouco, ele ia desaparecendo. No início de dezembro, peguei meus filhos e fui para São Paulo ajudar minha mãe, sou a filha mais velha.

Numa tarde em que fiquei com ele no hospital, pediu que eu o ajudasse a ir até a janela. Devia estar se sentindo melhor. Ficamos os dois , debruçados na janela, conversando sobre banalidades, nunca sobre a doença dele. Víamos as pessoas na rua, conversando, caminhando, rindo e nós dois fugindo do assunto que nos assombrava. Nisso, sai um ataúde com um corpo e meu pai comentou que talvez fosse de um pai de família, com filhos para criar e que faria muita falta. Usou o morto para falar nele mesmo e nas coisas que o estavam angustiando. Fez uma lista de políticos que poderiam ter morrido no lugar do desconhecido, que nós nem sabíamos se era um homem ou uma mulher. Não era medo da morte, era a preocupação de um pai.

Que vontade eu tive de abrir o jogo ! Mas onde estava a coragem ? Preferi fazer o jogo de minha mãe. Ficou para sempre na minha cabeça essa dúvida cruel - será que ele gostaria de ter falado sobre seus medos ? Suas preocupações? Me dar alguma orientação? Nunca vou saber. Meu pai não era um ignorante, trabalhou a vida inteira dentro de hospitais, ele era manipulador de farmácia, conhecia os remédios, conhecia a composição e uso deles, logo, sabia o que estava sendo usado nele. Eu odeio mentiras, mesmo as piedosas.

Quando o ajudei a sentar ele me olhou e disse que não sabia o motivo dos médicos o terem proibido de fumar. Disse que de comer ele não sentia a menor vontade mas o angustiava ficar sem fumar. Sempre foi um fumante exagerado, tinha os dedos amarelados pela nicotina. Fiquei sem saber o que responder. Ele sentia dor mas não falta de ar. Seu coração e pulmões eram fortes, ele custou a morrer e sofreu muito.

Sentei quieta ao lado dele. Pensava na hipocrisia que era proibirem meu pai de fazer algo que ele sentia falta. Parar de fumar não iria devolver a saúde dele . Ele estava morrendo. Olhei bem séria para ele, como uma mulher adulta e não a filha chorosa, perguntei se ele realmente queria fumar e se sabia o que estava fazendo. Disse que sim, estava lúcido e muito consciente, tive certeza , naquele momento, que ele sabia que o fim se aproximava. Perguntei se ele queria ficar sentado ou ir para a cama. Quis ficar sentado e eu desejei que ele não morresse, enquanto eu estivesse fora. Sai e comprei um maço do cigarro que ele fumava, nem filtro tinha. Voltei correndo e entreguei a ele. Abriu um enorme sorriso, piscou o olho para mim e afirmou que seria o nosso segredo. Há muito tempo ele não sorria mais.

Por ter comprado o cigarro, jamais senti culpa. Senti culpa por desejar que ele morresse, não suportava ver o sofrimento do meu pai. Ele vivia direto na morfina. De alguma forma, massagear os pés dele lhe dava conforto. Eu nunca havia feito massagem nele, quase sempre era minha mãe ou meus irmãos. Um dia ele pediu que eu fizesse. Não gostou, disse que minhas mãos eram muito macias e meu toque muito leve, pediu que chamasse minha mãe. Como fiquei triste, na verdade fiquei magoada.

Pois num belo domingo de sol, minha irmã tinha ido fazer a primeira prova do vestibular, estávamos na garagem assando um galeto( nunca mais comi essas aves) na companhia de um casal amigo e esperando minha irmã chegar para almoçarmos. Nem sei a hora direito, quando ouço o telefone tocar, vou atender e era meu cunhado. Não quis falar comigo, pediu para falar com meu marido. Eu soube na hora que meu pai havia atravessado o rio na barca de Coronte. Nesse exato momento minha irmã chegou.

Em momento de grande dor, eu simplesmente me desligo do mundo. Acho que para não sofrer. Não sei quem e nem o motivo de me levaram junto com minha irmã , para meu quarto e fecharam as janelas e a porta. De um momento para outro a minha casa estava cheia de amigos, vizinhos. Não lembro quem cuidou dos meus dois filhos. Nem pensava nas crianças para falar a verdade. A nossa reação foi a mais estranha possível, deitamos na minha cama, nos abraçamos e não conseguíamos parar de rir. Riamos e chorávamos ao mesmo tempo. Eu só consegui pensar que havia desejado a morte de meu pai, esse meu desejo me atormentou por longos anos pois eu amava tanto meu pai. Queria que ele morresse por não suportar mais ver o sofrimento dele. Mas vá lidar com isso na cabeça ! Ele descobriu que estava doente em fim de setembro e partiu 11 de janeiro, apenas três meses mas que representaram uma eternidade, de dor e sofrimento, para meu pai e para nós.

Hoje estou falando em morte , assunto difícil para mim. Eu não sei lidar com perdas afetivas. Essa separação definitiva me causar enorme dor, uma sensação de vazio. Cada um que parte leva um pedaço de mim com ele. Fico incompleta. Acho a morte obscena, nojenta e injusta. Quando ela não permite a pessoa morrer com alguma dignidade, pior ainda. Meu pai sempre foi um bom pai, uma pessoa honesta, justa e morreu no maior sofrimento. Não merecia isso e tinha apenas 56 anos.

Eu não tenho medo da morte e tão pouco de morrer, não quero enterro, não quero padre e nem flores, quero música (Losing my religion) e serei cremada, espalhada aos quatro ventos,vontade que registrei em testamento. Morrer para mim significa apenas o fim ! A centelha se apaga, a nossa energia que chega ao fim. Eu tenho pena dos que ficam, sei que a vida continua, e deve continuar, mas jamais será a mesma, a felicidade nunca mais será completa. claro que podemos ser felizes ainda, mas de forma diferente. É como se perdessemos a inocência diante da obscenidade da morte.

Sempre fico abalada com a morte de qualquer ser humano e hoje, fiquei indignada com a festa que o Flamengo fez ao Ronaldo, sem se importar com a tragédia que estava acontecendo no Estado do Rio. Em nome de todas vitimas, mortas por afogamento ou soterradas, o clube deveria ter cancelado, adiado a tal festa. Afinal de contas, quanto vale a vida de um ser humano?

A todas as vítimas das calamidades públicas que andam acontecendo, o meu respeito !

"E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti" (John Donne)

Café?